23 de dezembro de 2014

IMPROVISO AO SOM DE DEBUSSY

Chove como se uma
prece
se derramasse
entre os
dedos
de minha
tênue poesia
dedilho
nela os meus
rios
correm em direções inalcançáveis
de mim de dentro de
mim
de dentro de ti também
escorrem como
gritos
estridentes
de medo
de ti
Debussy está me diz-
endo
estamos
no auge da
vida
morrendo


3 de julho de 2014

O MUNDO ANDA TÃO COMPLICADO (Renato Russo/Dado Villa-Lobos)

Gosto de ver você dormir
Que nem criança com a boca aberta
O telefone chega sexta-feira
Aperto o passo por causa da garoa
Me empresta um par de meias
A gente chega na sessão das dez
Hoje eu acordo ao meio-dia
Amanhã é a sua vez
Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.
Temos que consertar o despertador
E separar todas as ferramentas
Que a mudança grande chegou
Com o fogão e a geladeira e a televisão
Não precisamos dormir no chão
Até que é bom, mas a cama chegou na terça
E na quinta chegou o som
Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo
E até que é fácil acostumar-se com meu jeito
Agora que temos nossa casa
é a chave que sempre esqueço
Vamos chamar nossos amigos
A gente faz uma feijoada
Esquece um pouco do trabalho
E fica de bate-papo
Temos a semana inteira pela frente
Você me conta como foi seu dia
E a gente diz um pro outro:
- Estou com sono, vamos dormir!
Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você
Quero ouvir uma canção de amor
Que fale da minha situação
De quem deixou a segurança de seu mundo
Por amor


6 de março de 2014

IMPROVISO DO ALTO DA BOA VISTA




Quantos lugares cabem na minha saudade de mim? Como pedras que se erguem durante milênios ignorados, o meu ser-saudade persiste na memória. Jamais saberei a verdade da pedra imensa, da lagoa, da onda intensa, da mata. Assim como a minha essência ancestral. Toda a minha vida tem sido a tentativa de gravar meu nome nessa pedra para que, daqui a três milênios, ao voltar aqui, eu encontre alguma referência, alguma marca que prove a validade de existir. Por que assim? Por quê? Este exercício constante de imitar a rocha, a água, o vento, a luz solar. E tudo é resposta! E nada é resposta. Como contemplar esta paisagem e pensar que, se o morro cederá à pressão das mãos do Tempo, resistirei?! Quando me perder nesses domínios, tornar-me-ei semente? Proliferarei? Poderei me reconhecer numa vida que talvez nunca tenha me pertencido? Quando eu retornar, será tão difícil, de novo, ser eu?


(Ao som de "Sombras Outonais", de Alexandre Guerra)

23 de novembro de 2013

FATIAS DE VIDA

"Ao exigir do artista uma atitude consciente em relação ao seu trabalho, você tem razão, mas confunde dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista."

Anton Tchekhov





Tchekhov é um escritor sublime, e, com ele, estou aprendendo a cada dia o quanto as "fatias de vida", muitas vezes, tendem a ser mais significativas que a vida inteira. Pelo menos na Literatura.

A vida não se revela na sua inteireza, mesmo porque a vida não é inteira. Ela se revela em certos momentos, aqueles nos quais toda a experiência, todo o conhecimento, toda a paixão se condensam e deixam evidente o significado da nossa existência. Não importa que, ainda assim, trate-se de um significado parcial - ao menos, ele dá sentido à nossa vacuidade, ou à vacuidade dos nossos atos e hábitos.

Tchekhov, Katherine Mansfield, Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Raymond Carver, John Cheever são exímios contistas porque, além do domínio técnico, sabem captar o quanto há de relevante em cada minúsculo momento da existência, na miserabilidade dos pequenos eventos, das pequenas percepções, das pequenas pistas que a vida oferece. 

Leio "Felicidade" ou "A festa no jardim" (Mansfield), "A dama do cachorrinho" ou "Angústia"(Tchekhov), "Aqueles dois" (Caio), "A imitação da rosa" (Clarice) e me pergunto: como eles foram capazes? que olhos eles acionaram para captar e transmitir tanta verdade? 

9 de novembro de 2013

PORTO ALEGRE

As águas robustas do lago
fluem como o sol que irradiam.
Sob a plataforma quente,
cantam, dançam,
sem nascente que lhes diga
para onde voltar.

O porto,
nem alegre nem triste,
vive.

Escrevo porque o pôr-do-sol
é indizível,
nele não cabem
o verbo ou a lágrima:
as águas cantam o silêncio.

31 de julho de 2011

UMA QUESTÃO

Diante de nós, um muro.
E uma fenda rasgada na carne.
Por onde podemos passar?

16 de julho de 2011

REGRESSÃO
















Na face inquieta do lago
a terra calma, a água clara,
e um desejo de cair.

De onde... que nascentezinha
perfurou o chão passado
e esculpiu na lama um homem?

Vejo um tigre branco ouvir
o mesmo som surdo e mudo,
e indo o sol, e vindo o sol...

Seus olhos me falam mais
que as palavras (cerração),
e a coruja assiste a tudo.

Como estás distante, amor,
como é bom não te querer,
e como arde esse pensar.

Breve será noite aqui
no tempo de folhas e águas.
Mas até quando é o não-tempo?