14 de janeiro de 2006

Esse deus cruel: o Amor

"Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém."
(Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno)


Só se pode cultuá-lo, desejá-lo,
Até mesmo criá-lo, mas, jamais, defini-lo.
Como sou impotente, como sou humano, e esse deus voraz
Que, como Cronos, engole seus filhos...
Não é apenas a noite que provoca o sonho
E incita a carência...
Não apenas as doses de álcool que entorpecem
Os sentidos e levam a um êxtase ou a uma angústia...

Ah... que desespero grita nos fundos do olhar calmo,
Das respostas claras como as lágrimas vertendo
Pelos milhares de rostos incógnitos deste mundo!

Se eu soubesse como amenizar sua fúria
Prescindindo de outros olhares, de outros toques,
Do espelho camuflado no gesto alheio...
Se eu soubesse como acalmar esse deus indômito
- Ah, eu juro! Eu peço sua piedade!
Poderia ele se compadecer
E me permitir somente desejar,
Desejar e jamais necessitar
Do objeto, eu, sujeito atônito e fraco?

O vazio na casa, no quarto, na cama
Me faz pensar no vazio do mundo
Tão preenchido de quereres...
E eu, assombrado diante do espetáculo,
Cubro meu rosto com as mãos inseguras,
Temendo não sobreviver ao grande horror
Desse deus imaterial, concreto
Apenas pelas suas exibições amorfas e inconstantes.

(Esse deus, como todo deus!)

Abro a janela e o que vejo
É uma imensa sombra que paira sobre o mundo...
Eu olho, sei que é isso o que me resta,
Já que minha insípida humanidade,
Minha incipiente coragem
Enxergam, sob esse véu cotidiano,
- Como monges decifram pergaminhos -
O desejo que vive como espera,
Não como esperança.

(Escrito em 15 de janeiro de 2006, numa noite em que a vida parecia não um mistério profundo, mas um Nada questionando sua completude.)

3 de janeiro de 2006

Um ano novo

Quando chega dezembro, ficamos num estado de euforia descontrolada, pensando nas compras que devemos fazer, nas roupas que vestiremos, nas viagens, em tanta coisa que esquecemos algo tão essencial que nos passa despercebido: o que significa terminar um ano? Sei que já comentei isso na última postagem, mas esse assunto me incomoda demais. Talvez fossem necessárias várias postagens para tentar exprimir aquilo que me aflige com relação a esse tema.
Corremos tanto, tanto... Não podemos nos concientizar do quanto nossa vida é alienada, em meio a contas, compromissos, exibicionismos?
Outro ano começou. Já estamos em 2006. E tudo vai se repetir? Vamos continuar vivendo como autômatos, olhando para tudo como se se tratasse apenas de números enfileirados no guarda-roupa, na agenda, na conta bancária? Vamos continuar a fazer de Deus somente um feriado no qual, novamente, pegaremos nossos carros e sairemos pelas estradas sem, em qualquer momento, questionarmos o significado das coisas, executando o que nos é imposto por um sistema narcisista e consumista?
Que mundo estamos construindo? Um mundo em que erguer é o mesmo que destruir? Um mundo em que o amor se reduziu a objetos compráveis e vendáveis, a uma troca de secreções equivalente a uma troca de mercadorias ou de favores? Em nenhum instante indagaremos sobre a relevância de tudo isso? Por quanto tempo fitaremos cadáveres e teremos, como única reação, um sinal-da-cruz automático? Quando foi que o ser humano deixou de ser sensível à sua própria vulnerabilidade?