31 de dezembro de 2008

O CEMITÉRIO MARINHO (Paul Valéry))







Ó minha alma, não aspira à vida
imortal, mas esgota o campo do possível.
(Píndaro)


Esse teto tranquilo, onde andam pombas,
Freme em tumbas e pinhos, quando tomba
Pleno o Meio-Dia e cria, abrasado,
O mar, o mar, sempre recomeçado!
Ó recompensa, após o ter pensado,
O olhar à paz dos deuses, prolongado!

Que labor de lampejos se consuma
Plural diamante de furtiva espuma
E a paz que se parece conceber!
Quando no abismo um sol procura pausa,
Pura obra-prima de uma eterna causa,
O Tempo cintila e o Sonho é saber.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e visível reserva,
Mar soberano, olho a guardar secreto
Sob um véu de chama o sono que acalma,
Ó meu silêncio!.. Edifício em minh’alma
Dourado cume de mil telhas, Teto!

Templo do Tempo, expresso num suspiro
Chegado ao alto eu amo o meu retiro,
De todo envolto em meu olhar marinho;
E como aos deuses melhor doação,
Semeia a serena cintilação
Desdém soberbo em meu alto caminho.

Como no gozo o fruto se dissolve,
E em delícia sua ausência se resolve
Na boca em que se extingue sua forma,
Sorvo aqui o futuro dos meus fumos,
E canta o céu, à alma que consumo,
As margens que em rumores se transformam.

Belo céu, vero céu me transfiguro!
Depois de tanto orgulho e estranho e impuro
Lazer – mesmo com forças a contento -
Eu me abandono ao reluzente espaço
E ao lar dos mortos, feito sombra, passo
Confinado a seus débeis movimentos.

Às tochas do solstício a alma aceita
E bem defende a justiça perfeita
Da luz, com suas armas sem piedade!
Torno-te, em teu lugar de origem, pura;
Mas olha!… ter a luz por criatura
Supõe de sombra uma triste metade.

Só pra mim, exclusividade extrema,
Perto de um peito, às fontes do poema,
Dividido entre o vácuo e o fato puro,
Quero escutar minha grandeza interna,
Amarga, escura e sonora cisterna,
N’alma um vazio som, sempre futuro!

Ó falso prisioneiro da folhagem,
Golfo que engole as grades em ramagem,
Vês nos meus olhos segredos ardentes,
Que corpo ao seu fim ocioso me impele,
Que fronte aos ossos da terra o compele?
Uma centelha lembra meus ausentes.

Fechado, sacro, em fogo imaterial,
Terreno ofertado à luz matinal,
Pleno de chamas – amo este lugar,
Composto em ouro e pedra, sombras, árvores
Onde por sobre sombras treme o mármore;
Sobre as tumbas, fiel, repousa o mar!

Cão esplendente, afasta adoradores!
Quando sozinho, em riso de pastores
Calmo apascento ovelhas misteriosas,
Rebanho branco de tumbas quiescentes,
Afasta logo essas pombas prudentes,
E os sonhos vãos e os anjos curiosos!

Aqui chegado, é preguiça, o futuro,
Toda a secura arranha, o inseto puro;
Queimado e findo é tudo ao ar doado
E a alguma que não sei, severa essência…
A vida é ampla, quando ébria de ausência
Doce amargura , o espírito aclarado.

Os mortos vão bem, guardados na terra
Que os aquece e os mistérios lhes encerra.
O meio-dia imóvel na amplidão
Pensa em si mesmo, e se vê satisfeito…
Completa fronte, diadema perfeito,
Eu sou em ti secreta alteração.

Só tens a mim para te proteger!
Remorsos, dúvidas que eu conhecer,
Do teu grande diamante são defeitos…
Mas numa noite pesada de mármores
Um povo errante entre raízes de árvores
Tem lentamente o teu partido aceito.

Eles se apagam numa ausência franca,
Bebeu a argila rubra a espécie branca.
O dom da vida em flores se recria!
Dos mortos, onde as frases familiares
As artes próprias, almas singulares?
E fia a larva onde o pranto nascia.

Os gritos das donzelas excitadas,
Os olhos, dentes, pálpebras molhadas,
O seio, encanto que brinca com fogo,
O sangue, luz nos lábios que se rendem,
Os bens finais e os dedos que os defendem,
Tudo retorna à terra e ao mesmo jogo!

E tu, grande alma, por um sonho esperas
Que já não tem as cores das quimeras
Que a humanos olhos o ouro e a onda trazem?
Cantarás, quando apenas vaporosa?
Tudo me foge à presença porosa,
Sagradas ânsias também se desfazem!

Magra imortalidade, negra e de ouro.
Consoladora horrível em seus louros,
Que fazes da morte um seio materno,
Bela mentira, a cilada mais pia,
Quem não conhece e quem não repudia
O crânio oco, este sorrir eterno?

Profundos pais, cabeças desertadas,
Sob o peso e o trabalho das enxadas
Sois a terra, e os passos nos perturbais;
O irrefutável roedor, o verme,
Não é para vós, que dormis inermes,
É para a vida e não me deixa mais!

Amor, talvez, ou ódio é que o anima?
Tanto o seu dente oculto se aproxima
Que os nomes todos lhe são convenientes!
Que importa? Ele vê, sonha, quer, reclama!
Ama-me a carne, e mesmo em minha cama
A este ser pertenço eternamente!

Zenão, Zenão de Eléia, desumano!
Feriste-me de um dardo alado e insano
Que voa e está inerte nos espaços!
Gera-me o som, rouba-me o dardo a vida!
Ó sol… Que tartaruga à alma surgida,
Ver Aquiles imóvel nos seus passos!

Não, não!… De pé!… às horas sucessivas!
Quebra, meu corpo, a forma pensativa!
Bebe, meu seio, a brisa renascida!
Um novo frescor, do mar exalado
Devolve-me a alma… Ó poder salgado!
Vamos à onda, ao ímpeto da vida!

Sim! Grande mar de delírios dotado,
Pelo de pantera, manto rasgado
É por mil ídolos do sol ferido,
Ébria da carne azul, hidra absoluta
Que em luz a própria cauda morde e luta
Num tumulto ao silêncio parecido,

Eis se ergue o vento!… Há que tentar viver!
O ar me abre e fecha o livro que ia ler;
Vaga audaciosa, às rochas te esfacelas!
Pois voa, página que enlouqueceste!
Rompei, vagas,de águas felizes, este
Teto tranquilo onde bicavam velas!

(TRADUÇÃO DE JORGE WANDERLEY)

24 de dezembro de 2008

NOITE DE NATAL

Se meu coração cantasse, seria como relâmpagos quase afônicos recortando o céu violeta. Ele talvez ferisse um pouco a paz do céu, ele talvez se contemplasse como um doente estirado sobre uma cama.
Mas, talvez, numa noite simples, ao ouvir os estouros das risadas vizinhas, ele acordasse e levantasse e andasse até a janela mais próxima, veria então uma cascata se espargindo entre as nuvens, luminosa, distante mas aquecedora.
Talvez, então, ele soubesse que de toda dor florescem estradas para um futuro imediato, ele ressuscitaria como quem nasce. Seria como uma árvore cercada de finos vagalumes, tão intratáveis, e tão generosos.
Ele cantaria, um pássaro cujo vôo é muito mais que abrir asas de susto. Ele entraria em cada casa, sem bater, para agradecer a própria voz, recostaria sua cabeça cansada numa poltrona sangüínea e acolhedora, sentiria os perfumes das ceias, dos abraços, dos beijos que um dia daria em silêncio em rostos sangüíneos e acolhedores, intumescidos de suor e de desejo.
Ele saberia que há uma porta de fogo atrás de cada sonho, e que só por essa porta se pode passar, sem olhar para trás, sem se desesperançar.
E voltaria à sua janela.

2 de dezembro de 2008

ANDARILHO ou O JARDINEIRO DE GALÁXIAS

Ele era apenas um homem. Pequeno demais para conter represas, grande demais para beber de suas águas. Ele era mínimo como um coração que bate num corpo sem vida. Olhava rosas sem saber que elas estavam ali para viver para sempre, embora morressem nas navalhas do dia. Procurava adentrar buracos-negros nos olhos dos outros, mas jamais era sugado, ele, que nascera para o vento, para o sol, para si mesmo. Os outros homens o cumprimentavam distraídos, como quem faz o sinal-da-cruz ao deparar um defunto. As mulheres pareciam ignorá-lo, sabendo que aqueles braços, talvez, pudessem protegê-las quem sabe do quê. Tudo tão distante, tudo tão fútil, tudo tão vivo.
Pensar doía como dentes doíam. Os seus dentes de querer doíam. Viver era uma cárie funda que só seria curada com uma extirpação. Vasculhava seus bolsos em busca de algum dinheiro e, quando o encontrava, guardava-o novamente porque gastar mostrava sua despreocupação com o futuro. Ainda viveria muito, sabia. Mas se o que viveria seria alguma espécie trôpega de vida, quem é que saberia. Seus pés pareciam consumir o cimento da calçada e se desfazerem sob a dança entre as nuvens e o sol. Que brilho doente! Que fascinação de se manter cego! E como era bom enxergar!
Ele era apenas um homem. E se colheria do seu jardim de estrelas alguma flor vindoura, algum fruto verde, ninguém jamais poderia saber.

PASSISTA

Acho um exagero a sua ginga
pode ser que eu me escorra da sua face
quando no impasse de um piscar dos altos passos
meu suor se espraie sobre o frio das suas tintas.

Os olhos desse brilho me ignoram
ao me contemplarem se movendo:
garça morena, sereia da savana, voa essa voz
muda que dança em silêncio de serpente.

Nunca beberei da sua pinga
mesmo ardendo as vísceras nas suas unhas
é o que me arranca dos meus nimbos
e me traz até o chão da sua pele de penumbra.