16 de março de 2009

"FORSE UN MATTINO ANDANDO IN UN'ARIA DI VETRO" (EUGENIO MONTALE)

(Esse é um poema curto de Eugenio Montale, do maravilhoso "Ossos de Sépia". É de uma simplicidade e, ao mesmo tempo, de uma vastidão que os grandes artistas conseguem. A solidão máxima e a percepção repentina de que existimos sozinhos num mundo que existe e independe de nós causa um terror de bêbado, o desnorteamento, o medo extremo, a consciência máxima. Montale se abriu para mim com esse poema mínimo e verdadeiro. O artesanato do poema é vertiginoso. De repente, também, como leitores, percebemos que estamos dentro dessa realidade que se abandona para voltar a si mesma, mas agora irreversivelmente dentro de cada um de nós.)

Forse un mattino andando in un'aria di vetro,
arida, rivolgendomi vedró compirsi il miracolo:
il nulla alle mie spalle, il vuoto dietro
di me, con un terrore di ubriaco.

Poi come s'uno schermo, s'accamperanno di gitto
alberi case colli per l'inganno consueto.
Ma sarà troppo tardi; ed io me n'andró zitto
tra gli uomini che non si voltano, col mio segreto.


Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde ~ e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

(trad. de Geraldo H. Cavalcanti)

P.S.: Não menos maravilhoso é o ensaio que Italo Calvino, no fundamental POR QUE LER OS CLÁSSICOS, dedica a esse poema. É um daqueles casos em que a crítica literária realmente se equipara à própria obra.

8 de março de 2009

DE RELANCE

A língua aguda do amor
corta a madrugada.
Sonâmbulos, os bêbados
olvidam possíveis atalhos
e rastejam pelos muros,
jibóias nos postes.

Uma gata grita de dor
(os outros estão surdos).

Há janelas acesas
para a favela defronte
- nenhuma confessa o pavor.

Em algum jardim,
deceparam-se as rosas.
Restaram, bem longe, muito longe,
jacintos e orquídeas.

Como uma dama-da-noite,
você me abraça...
De repente, percebo
que não sonhava.