30 de setembro de 2004

Noite de setembro

Enquanto escrevo, minha janela está aberta, por ela entra um vento não muito forte, porém frio. Fumo um cigarro, outro cigarro; limpo meus óculos, coço meu nariz, olho para casas e prédios e ruas, tudo confuso entre luzes amarelas e escuridão. Penso em minha vida, naquilo que ganhei, naquilo que perdi, naquilo que planejo ter. Penso e escrevo. As palavras saem, como estivessem aprisionadas e, pássaros engaiolados famintos de liberdade, vão se alojar no espaço vazio da tela do computador. Saem de um cativeiro e ficam estáticas em outro cativeiro.
É difícil pensar: a emoção é tão maior que o pensamento. O que se encontra em minha alma, minha pobre e tão inquieta alma, procura incansável um amparo, um consolo; minha emoção vasta parece se conformar apenas nas letras acumuladas linearmente à minha frente; mas, mesmo isso, parece tão pouco...
A vida é, com certeza, muito maior que a arte; mais surpreendente, menos indomável, mais misteriosa, menos racional. Pois toda forma de arte vem de alguma mente criadora. E nós, viemos de onde? Qual a mente que traça nossa trajetória, ou aquilo a que inconscientemente chamamos destino? Já Shakespeare fez dessas perguntas o tema subjacente de suas obras: seus personagens são almas perdidas à procura de possíveis respostas para suas condições.
Mas será que conseguiríamos ter consciência da impossibilidade de resolver tais dúvidas se não existissem Shakespeare, Proust, Faulkner, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Dostoiévski? Teríamos conhecimento da dúvida se mentes perplexas não transpusessem em palavras a nossa eterna angústia?? A grande arte nos põe perplexos diante de nós mesmos e nos faz detectar a carência de não sabermos quem ou o que somos no mundo que aprendemos a chamar de "nosso".
Como disse uma vez, num de seus textos, o magnífico Yeats: "Da contenda de um homem com os outros nasce a retórica; da contenda consigo mesmo surge a poesia." Somos os degarrados à espera de uma segunda vinda: a segunda vinda, acredito eu, não seria a de um Jesus encarnado, mas de um respeito pela humanidade e de uma profunda compreensão do nosso lado humano, tão frágil e nu, que foi afinal a maior de suas lições. E, enquanto isso não ocorre, a arte vem a preencher o vazio de nossa condição, buscando elevação e dignidade onde só encontramos dor.

22 de setembro de 2004

Prólogo

Primeiro de tudo: por que candidato a poeta? Não sei se tenho uma visão extremamente sacralizada do que possa ser a poesia, mas acredito que ser poeta é algo que exige do ser humano uma dimensão tão profunda de humanidade, algo intenso demais para pessoas enraizadas no cotidiano mais raso de suas emoções.
Ser poeta é além de ser humano. É estar distante do ramerrão o bastante para adentrar-se nele e remover suas frágeis estruturas tendo como instrumento nossa linguagem. Tirar do cotidiano da linguagem seu sub-reptício poder encantador. Há algo de mágico nas palavras, capaz de construir e de destruir, uma ação interferindo na outra ou conjugando-se à outra.
Enxergar isso está além do que a maioria de nós, mortais à espera da morte, numa vida insossa e restrita, tem a capacidade de fazer. Penetrar "surdamente no reino das palavras" (Drummond) para transcender o que a nossa parca realidade nos oferece a preços tão altos faz-se atividade não de escolhidos pela poesia, mas daqueles que escolhem a poesia.
E esse lugar está destinado a poucos.
Eu escolhi a poesia, mas ainda falta encontrar o caminho até ela. Por isso, sou um candidato a poeta, aspirante a caminheiro por estradas sombrias e tortuosas, por palavras traiçoeiras e viciadas, a fim de alcançar esse lugar tão misterioso quanto mágico a que damos o nome de arte.