31 de dezembro de 2008

O CEMITÉRIO MARINHO (Paul Valéry))







Ó minha alma, não aspira à vida
imortal, mas esgota o campo do possível.
(Píndaro)


Esse teto tranquilo, onde andam pombas,
Freme em tumbas e pinhos, quando tomba
Pleno o Meio-Dia e cria, abrasado,
O mar, o mar, sempre recomeçado!
Ó recompensa, após o ter pensado,
O olhar à paz dos deuses, prolongado!

Que labor de lampejos se consuma
Plural diamante de furtiva espuma
E a paz que se parece conceber!
Quando no abismo um sol procura pausa,
Pura obra-prima de uma eterna causa,
O Tempo cintila e o Sonho é saber.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e visível reserva,
Mar soberano, olho a guardar secreto
Sob um véu de chama o sono que acalma,
Ó meu silêncio!.. Edifício em minh’alma
Dourado cume de mil telhas, Teto!

Templo do Tempo, expresso num suspiro
Chegado ao alto eu amo o meu retiro,
De todo envolto em meu olhar marinho;
E como aos deuses melhor doação,
Semeia a serena cintilação
Desdém soberbo em meu alto caminho.

Como no gozo o fruto se dissolve,
E em delícia sua ausência se resolve
Na boca em que se extingue sua forma,
Sorvo aqui o futuro dos meus fumos,
E canta o céu, à alma que consumo,
As margens que em rumores se transformam.

Belo céu, vero céu me transfiguro!
Depois de tanto orgulho e estranho e impuro
Lazer – mesmo com forças a contento -
Eu me abandono ao reluzente espaço
E ao lar dos mortos, feito sombra, passo
Confinado a seus débeis movimentos.

Às tochas do solstício a alma aceita
E bem defende a justiça perfeita
Da luz, com suas armas sem piedade!
Torno-te, em teu lugar de origem, pura;
Mas olha!… ter a luz por criatura
Supõe de sombra uma triste metade.

Só pra mim, exclusividade extrema,
Perto de um peito, às fontes do poema,
Dividido entre o vácuo e o fato puro,
Quero escutar minha grandeza interna,
Amarga, escura e sonora cisterna,
N’alma um vazio som, sempre futuro!

Ó falso prisioneiro da folhagem,
Golfo que engole as grades em ramagem,
Vês nos meus olhos segredos ardentes,
Que corpo ao seu fim ocioso me impele,
Que fronte aos ossos da terra o compele?
Uma centelha lembra meus ausentes.

Fechado, sacro, em fogo imaterial,
Terreno ofertado à luz matinal,
Pleno de chamas – amo este lugar,
Composto em ouro e pedra, sombras, árvores
Onde por sobre sombras treme o mármore;
Sobre as tumbas, fiel, repousa o mar!

Cão esplendente, afasta adoradores!
Quando sozinho, em riso de pastores
Calmo apascento ovelhas misteriosas,
Rebanho branco de tumbas quiescentes,
Afasta logo essas pombas prudentes,
E os sonhos vãos e os anjos curiosos!

Aqui chegado, é preguiça, o futuro,
Toda a secura arranha, o inseto puro;
Queimado e findo é tudo ao ar doado
E a alguma que não sei, severa essência…
A vida é ampla, quando ébria de ausência
Doce amargura , o espírito aclarado.

Os mortos vão bem, guardados na terra
Que os aquece e os mistérios lhes encerra.
O meio-dia imóvel na amplidão
Pensa em si mesmo, e se vê satisfeito…
Completa fronte, diadema perfeito,
Eu sou em ti secreta alteração.

Só tens a mim para te proteger!
Remorsos, dúvidas que eu conhecer,
Do teu grande diamante são defeitos…
Mas numa noite pesada de mármores
Um povo errante entre raízes de árvores
Tem lentamente o teu partido aceito.

Eles se apagam numa ausência franca,
Bebeu a argila rubra a espécie branca.
O dom da vida em flores se recria!
Dos mortos, onde as frases familiares
As artes próprias, almas singulares?
E fia a larva onde o pranto nascia.

Os gritos das donzelas excitadas,
Os olhos, dentes, pálpebras molhadas,
O seio, encanto que brinca com fogo,
O sangue, luz nos lábios que se rendem,
Os bens finais e os dedos que os defendem,
Tudo retorna à terra e ao mesmo jogo!

E tu, grande alma, por um sonho esperas
Que já não tem as cores das quimeras
Que a humanos olhos o ouro e a onda trazem?
Cantarás, quando apenas vaporosa?
Tudo me foge à presença porosa,
Sagradas ânsias também se desfazem!

Magra imortalidade, negra e de ouro.
Consoladora horrível em seus louros,
Que fazes da morte um seio materno,
Bela mentira, a cilada mais pia,
Quem não conhece e quem não repudia
O crânio oco, este sorrir eterno?

Profundos pais, cabeças desertadas,
Sob o peso e o trabalho das enxadas
Sois a terra, e os passos nos perturbais;
O irrefutável roedor, o verme,
Não é para vós, que dormis inermes,
É para a vida e não me deixa mais!

Amor, talvez, ou ódio é que o anima?
Tanto o seu dente oculto se aproxima
Que os nomes todos lhe são convenientes!
Que importa? Ele vê, sonha, quer, reclama!
Ama-me a carne, e mesmo em minha cama
A este ser pertenço eternamente!

Zenão, Zenão de Eléia, desumano!
Feriste-me de um dardo alado e insano
Que voa e está inerte nos espaços!
Gera-me o som, rouba-me o dardo a vida!
Ó sol… Que tartaruga à alma surgida,
Ver Aquiles imóvel nos seus passos!

Não, não!… De pé!… às horas sucessivas!
Quebra, meu corpo, a forma pensativa!
Bebe, meu seio, a brisa renascida!
Um novo frescor, do mar exalado
Devolve-me a alma… Ó poder salgado!
Vamos à onda, ao ímpeto da vida!

Sim! Grande mar de delírios dotado,
Pelo de pantera, manto rasgado
É por mil ídolos do sol ferido,
Ébria da carne azul, hidra absoluta
Que em luz a própria cauda morde e luta
Num tumulto ao silêncio parecido,

Eis se ergue o vento!… Há que tentar viver!
O ar me abre e fecha o livro que ia ler;
Vaga audaciosa, às rochas te esfacelas!
Pois voa, página que enlouqueceste!
Rompei, vagas,de águas felizes, este
Teto tranquilo onde bicavam velas!

(TRADUÇÃO DE JORGE WANDERLEY)

24 de dezembro de 2008

NOITE DE NATAL

Se meu coração cantasse, seria como relâmpagos quase afônicos recortando o céu violeta. Ele talvez ferisse um pouco a paz do céu, ele talvez se contemplasse como um doente estirado sobre uma cama.
Mas, talvez, numa noite simples, ao ouvir os estouros das risadas vizinhas, ele acordasse e levantasse e andasse até a janela mais próxima, veria então uma cascata se espargindo entre as nuvens, luminosa, distante mas aquecedora.
Talvez, então, ele soubesse que de toda dor florescem estradas para um futuro imediato, ele ressuscitaria como quem nasce. Seria como uma árvore cercada de finos vagalumes, tão intratáveis, e tão generosos.
Ele cantaria, um pássaro cujo vôo é muito mais que abrir asas de susto. Ele entraria em cada casa, sem bater, para agradecer a própria voz, recostaria sua cabeça cansada numa poltrona sangüínea e acolhedora, sentiria os perfumes das ceias, dos abraços, dos beijos que um dia daria em silêncio em rostos sangüíneos e acolhedores, intumescidos de suor e de desejo.
Ele saberia que há uma porta de fogo atrás de cada sonho, e que só por essa porta se pode passar, sem olhar para trás, sem se desesperançar.
E voltaria à sua janela.

2 de dezembro de 2008

ANDARILHO ou O JARDINEIRO DE GALÁXIAS

Ele era apenas um homem. Pequeno demais para conter represas, grande demais para beber de suas águas. Ele era mínimo como um coração que bate num corpo sem vida. Olhava rosas sem saber que elas estavam ali para viver para sempre, embora morressem nas navalhas do dia. Procurava adentrar buracos-negros nos olhos dos outros, mas jamais era sugado, ele, que nascera para o vento, para o sol, para si mesmo. Os outros homens o cumprimentavam distraídos, como quem faz o sinal-da-cruz ao deparar um defunto. As mulheres pareciam ignorá-lo, sabendo que aqueles braços, talvez, pudessem protegê-las quem sabe do quê. Tudo tão distante, tudo tão fútil, tudo tão vivo.
Pensar doía como dentes doíam. Os seus dentes de querer doíam. Viver era uma cárie funda que só seria curada com uma extirpação. Vasculhava seus bolsos em busca de algum dinheiro e, quando o encontrava, guardava-o novamente porque gastar mostrava sua despreocupação com o futuro. Ainda viveria muito, sabia. Mas se o que viveria seria alguma espécie trôpega de vida, quem é que saberia. Seus pés pareciam consumir o cimento da calçada e se desfazerem sob a dança entre as nuvens e o sol. Que brilho doente! Que fascinação de se manter cego! E como era bom enxergar!
Ele era apenas um homem. E se colheria do seu jardim de estrelas alguma flor vindoura, algum fruto verde, ninguém jamais poderia saber.

PASSISTA

Acho um exagero a sua ginga
pode ser que eu me escorra da sua face
quando no impasse de um piscar dos altos passos
meu suor se espraie sobre o frio das suas tintas.

Os olhos desse brilho me ignoram
ao me contemplarem se movendo:
garça morena, sereia da savana, voa essa voz
muda que dança em silêncio de serpente.

Nunca beberei da sua pinga
mesmo ardendo as vísceras nas suas unhas
é o que me arranca dos meus nimbos
e me traz até o chão da sua pele de penumbra.

10 de novembro de 2008

O TORSO ARCAICO DE APOLO (Rainer Maria Rilke)

(Um dos poemas mais belos que a humanidade já presenciou, numa versão que, nas palavras de quem entende, recria com igual beleza o original. Aqui, o encontro de dois poetas superiores, como se ambos contemplassem a mesma obra e, desse ver entranhas, chegassem à mesma conclusão: a matéria esconde na sua brutalidade a mão do homem capaz de redescobrir no inanimado a vida que o guia.)

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas. Porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida,
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

(Tradução de Manuel Bandeira)

3 de novembro de 2008

ELEGIA

(Esse é um dos meus poemas mais antigos. Foi concebido a partir do impacto que causou o poema "Hora absurda", de Fernando Pessoa. Eu fiquei tão encantado com aqueles versos esparsos, queria fazer algo semelhante. E o resultado foi isso. Peço-lhes perdão.)

Hoje chove como um céu que desaba
Sobre campos de flores nascidas há anos!
O céu é um manto sereno que jamais acaba,
Tecido azulado de sentimentos humanos...

Sinto cada dia como um homem perdido que ama
E procura em todos os rostos um rosto especial!
Um cão roçando pernas e postes... Uma chama
Que não queima... Uma brisa no meio de um temporal...

Meu coração pulsa com a ânsia de uma criança,
A fluidez mágica de um anjo e sua espada candente...
O sol se esconde num cobertor espesso de nuvens... Alcança,
Ainda assim meu peito carente, inocente...

E me lembro apenas de ti, que me embalas
Em meus sonhos tristes... Surges, de repente,
Num sorrir cândido, e amas e abres os portais, e calas
Minha boca seca num beijo diáfano e quente...

Tenho medo deste temor que me aquece, enfim...
Saio cabisbaixo através de ruas escuras e infinitas...
E procuro teu rosto distante ao se afastar de mim...
Calo-me no desejo de areias e paisagens mais bonitas...

Meu coração naufraga na alucinação do eterno!
Caminho sem cessar o mesmo caminho de volúpia e dor...
Rejeito-me como o filho ao pai que o abandona ao inverno
De sua vida a se fazer. E a tudo isto se dá o nome de amor...

15 de outubro de 2008

LEDA E O CISNE (William Butler Yeats)


(Um soneto, apenas um soneto: obra máxima de concisão. Mas toda uma história, que mistura o lendário e o real, a ponto de não sabermos mais distinguir o que é verdade do que é ficção. Mas a arte também é real, porque também é construção. A História é terror, violência e fascinação... e morte! O Monstro que encanta e estupra. A Arma que seduz e assassina. Um ciclo que engendra a humanidade e do qual ela jamais se libertará.)



LEDA AND THE SWAN


A sudden blow: the great wings beating still

Above the staggering girl, her thighs caressed

By the dark webs, her nape caught in his bill,

He holds her helpless breast upon his breast.


How can those terrified vague fingers push

The feathered glory from her loosening thighs?

And how can body, laid in that white rush,

But feel the strange heart beating where it lies?


A shudder in the loins engenders there

The broken wall, the burning roof and tower

And Agamemnon dead.

Being so caught up,


So mastered by the brute blood of the air

Did she put on his knowledge with his power

Before the indifferent beak could let her drop?



LEDA E O CISNE


Um baque súbito. A asa enorme ainda se abate

Sobre a moça que treme. Em suas coxas o peso

Da palma escura acariciante. O bico preso

À nuca, contra o peito o peito se debate.


Como podem os pobres dedos sem vigor

Negar à glória e à pluma as coxas que se vão

Abrindo e como, entregue a tão branco furor,

Não sentir o pulsar do estranho coração?


Um frêmito nos rins haverá de engendrar

Os muros em ruína, a torre, o teto a arder

E Agamênnon, morrendo.

Ela, tão sem defesa,


Brutalizada pelo abrupto sangue do ar,

Se impregnaria de tal força e tal saber

Antes que o bico inerte abandonasse a presa?

(trad. de Augusto de Campos)

13 de outubro de 2008

DESCORTÍNIO




(A Samara Sieber)




Descobre no fundo do poço o riso
Com que animas a madrugada fria.
Sabes a vento, penetras o siso
E voas de brilho a imensidão do dia!

Amada, ao lado de ti é Paraíso
Todo breu que circunda a sombra esguia!
Semeias flores e frutos no liso
Estéril. És flor vinda da agonia...

Escavas nas palavras o teu ser,
Amas as montanhas, os rios, os vales...
Onde estavas, ave do infinito?

Agora que me prendes no viver
Que espraias além de todos os males,
Vivemos nosso mundo mais bonito!

7 de outubro de 2008

FÚRIA (Fábio Santos e Samara Sieber)

Na fibra da tarde que aguarda o luar,
foi teu o murmúrio que ouvi ao gritar:
amores e cóleras tênues de luz
(e tudo o que dizes é a paz e seduz).

Entanto me matas,
asfixias meu sol,
engasgas o hálito da minha calma:
onde estás quando me persegues?

No meu ventre, nos meus sonhos,
em lugar qualquer da minha alma?
Lambes meus versos, minhas rimas,
minhas verdades, minhas mentiras.

Invades aquilo que eu penso ser
o meu corpo:
mas é a minha alma.
Tenho medo de ti.

7 de setembro de 2008

O ALBATROZ (CHARLES BAUDELAIRE)


(Um dos meus poemas preferidos, sem dúvida arquetípico... O Poeta encarcerado entre as gentes, das quais vive... Não tão puro, mas como custa caro ser menos impuro, a tentativa de se livrar da conspurcação... Mas a timidez do canto, algo que queima na ânsia da voz...)


Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado ao chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

(tradução de Ivan Junqueira)

3 de agosto de 2008

MORTES E ENTRADAS (DYLAN THOMAS)

(Mais uma homenagem a um poeta que eu estou aprendendo a conhecer. Enquanto eu não conseguir entendê-lo, só me resta admirá-lo.)


Deaths and Entrances

On almost the incendiary eve

Of several near deaths,
When one at the great least of your best loved
And always known must leave
Lions and fires of his flying breath,
Of your immortal friends
Who'd raise the organs of the counted dust
To shoot and sing your praise,
One who called deepest down shall hold his peace
That cannot sink or cease
Endlessly to his wound
In many married London's estranging grief.

On almost the incendiary eve
When at your lips and keys,
Locking, unlocking, the murdered strangers weave,
One who is most unknown,
Your polestar neighbour, sun of another street,
Will dive up to his tears.
He'll bathe his raining blood in the male sea
Who strode for your own dead
And wind his globe out of your water thread
And load the throats of shellswith every cry since light
Flashed first across his thunderclapping eyes.

On almost the incendiary eve
Of deaths and entrances,
When near and strange wounded on London's waves
Have sought your single grave,
One enemy, of many, who knows well
Your heart is luminous
In the watched dark, quivering through locks and caves,
Will pull the thunderbolts
To shut the sun, plunge, mount your darkened keys
And sear just riders back,
Until that one loved least
Looms the last Samson of your zodiac.


Mortes e Entradas

Quase às vésperas incendiárias
De várias mortes próximas,
Quando alguém ante os despojos de quem mais amaste,
E desde sempre conhecido, tenha de abandonar
Os leões e as flamas de sua volátil respiração,
Quem dentre os teus amigos imortais
Elevaria o som dos órgãos do pó inventariado
Para lançar e cantar os teus louvores,
O que mais fundo os invocasse conquistaria a sua paz
Que não pode se afogar ou se esvair
Sem fim junto à sua chaga
Nas muitas e alienantes dores conjugais de Londres.

Quase às vésperas incendiárias
Quando diante de teus lábios e chaves,
Fechando, abrindo, se entrelacem os estranhos assassinados,
Aquele que é o mais desconhecido,
Teu vizinho, a estrela polar, sol de uma outra rua,
Mergulhará em tuas lágrimas.
Ele há de banhar teu sangue chuvoso no másculo oceano
Que percorrerá teu próprio morto
E fará girar sua esfera fora de teu fio de água
E entupirá as gargantas das conchas
Com todos os gritos desde que a luz
Começou a jorrar através de seus olhos tonitruantes.

Quase às vésperas incendiárias
De mortes e entradas,
Quando próximo e estranho, ferido nas ondas de Londres,
Hajas procurado a tua tumba solitária,
Um inimigo entre muitos, que bem sabe
Como cintila o teu coração
Nas trevas vigiadas, pulsando entre furnas e ferrolhos,
Arrancará os raios
Para tapar o sol, mergulhará, galgará tuas teclas sombrias
E fará definhar os ginetes para que recuem,
Até que aquele despojo adorado
Avulte como o último Sansão de teu zodíaco.
(trad. de Ivan Junqueira)


28 de julho de 2008

SINESTESIA

Céu azul de anil e laranja
leve, livre e luxuriante
leva o firmamento frouxo
ao fluxo firme de fé em fissuras e feitiços
amaldiçoadas as horas em que me entreguei
ao vôo, ao copo, ao corpo
e na penumbra, sonhos inesperados
tornam-se claros
foge no auge, eu que te afogo em mim
eu, que subi até os estratos mais altos
para, sem véu, sem vácuo, amar-te vadio
sou gaivota, sou gestante, sou gente
gente que grita, gente que chora
gente que canta, gente que ora
que por hora quer ser feliz
na ágora, com todos, agora
eu, entre o que é céu e mar, sou ar
que penetra nos espaços descuidados
bato janelas, arredondo saias, lanço chapéus
com a força de corrente, sou ar corrente
na fimbria do ser
leveza que esbarra
nos móveis da alma
em sorriso de mesa alegria
sirvo o jantar na ampla sala
abro meus braços
e respiro o afeto do universo
do horizonte
deito meu corpo ao lado do teu
deito meu espaço ao lado do teu
leve e lancinante
lascivo
luxuriante
bendita a hora em que descobri
que minha vida seria tua.

Que cores tingem esta noite virgem ?

Binho Santos
Bruno R Furlan
Carlos Savasini
Carmem Sanches
Osvaldo Pastorelli
Rosangela Aliberti
Samara Sieber
Selda Roldan
Vitória Paterna

(19/07/2008)

AURORA

Por Binho Santos
Bruno R Furlan
Carlos Savasini
Carmem Sanches
Osvaldo Pastorelli
Rosangela Aliberti
Samara Sieber

No dilúvio dos copos
sorriem as espumas
nos cantos da mesa
escorrendo desejos
sortidos e esparsos
aquosos e fluidos
vida líquida
amniótica
correnteza
poço sem fundo
liberdade nos verbos
cruzamento de gestos
olhares, cadências

Dolentes, brisas perpassam as letras ...
Lentas, as frases sem verbos timbram
no papel a hora clara ...

Rara, a aurora da alma deslumbra ...
Rubra, a neve colore o vazio e vive
no umbral das campinas ... umbigo !

Canto de minh’alma, ecoa pelas pradarias
voa livre sem barreiras
até que um dia ...
os copos se quebram
nos rochedos
das angústias.

(19/07/2008)

7 de julho de 2008

SAILING TO BYZANTIUM (WILLIAM BUTLER YEATS)

(Yeats é um poeta fundamental. Soube aliar a precisão na utilização do instrumental fornecido pela sua língua a temáticas em princípio obscuras, mas com certeza simples na universalidade que possuem (morte, passagem do tempo, sentimento de instabilidade da existência). O poema a seguir confirma tais idéias. A História do pensamento e da Arte surgem, nesse poema, como uma forma de escapar à finitude do presente e de, portanto, esquivar-se da Morte. Bizâncio figura, aqui, como a Vida que lateja nas ruínas. Mas, mais que isso, Yeats trata aqui de si mesmo, já que a velhice e seus acompanhantes, a decrepitude, a degenerescência, aparecem com freqüência na sua obra. Sailing to Byzantium é, talvez, um testamento do poeta, que enxerga a esperança na retomada consciente e criativa de um passado glorioso, o qual fez do presente um futuro atemporal.)

I
That is no country for old men. The young

In one another's arms, birds in the trees
—Those dying generations — at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

II
An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

III
O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animalIt knows not what it is;
and gather meInto the artifice of eternity.

IV
Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come. 1927




VIAJANDO PARA BIZÂNCIO
Tradução: Augusto de Campos

I
Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.

II
Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto, ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância,
em busca da cidade santa de Bizâncio.

III
Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser.
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.

IV
Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas,
pousado em ramo de ouro, como um pássa-
ro, o que passou e passará e sempre passa.

13 de maio de 2008

A ESTRADA NÃO TRILHADA (Robert Frost)

(Lembro aqui um dos poetas favoritos, com um dos meus poemas favoritos, que sempre diz tanto de cada um de nós, que, em momentos de extrema angústia, perguntamo-nos sobre as várias possibilidades de outras existências, talvez todas levando a lugar algum.)

The Road Not Taken (Robert Frost)

Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I-
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.


A estrada não trilhada (Trad. de Renato Suttana)

Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
Assim, por longo tempo eu ali me detive,
e um deles observei até um longe declive
no qual, dobrando, desaparecia...

Porém tomei o outro, igualmente viável,
e tendo mesmo um atrativo especial,
pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
os tivesse marcado por igual.

E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
de folhas que nenhum pisar enegrecera.
O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.

21 de abril de 2008

Poema a quatro mãos (Tyta Dutra e Binho Santos)


Numa mesa, num bar


Sentado entre amigos na mesa do bar,

Poesia, música, besteirol, cerveja, fumaça de cigarro,

Uma proposta: poesia a quatro mãos.

Minhas mãos calejadas

De estar sozinho na noite,

Masturbação do pensar,

Escrever com gosto

O rosto que não há.

Poesia erótica pra atiçar

A mente a mão já aquecida a escrever

O corpo já molhado depois do prazer de escrever,

De degustar as coisas boas da vida:

Os amigos, a bebida,

A poesia, a cançao desta vida,

Esquecer, sem piedade, o corre-corre da avenida.

Amar, sem concessões, os desafios

Desta vida...

Mesmo perdidas, as almas

Se reconhecem...

Aqui estamos... aqui estamos...

Aqui estamos... sem saída.

Dois poetas (Gabriela Cuzzuol e Carlos Savasini)


Minha homenagem a dois grandes amigos que, por uma dessas coincidências somente pela Vida conhecidas, são também dois grandes artesãos do Verbo. Minha forma de celebrar essa ocasião: uma dádiva oferecida por algum ser velado, chame-se ele Destino ou Acaso. O que passou, o que passará: o que passa. Mas a Arte, a qual sempre sobrevive a todas as correntezas...


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AGORA

Agora que eras
A sanidade da mente minha;
Clamor que a oração continha;
Ponta de luz revirando o mal;

Eras o bem que em verdade traduzia;
Caminho que a si próprio descobria;
Chance divina do cumprimento cabal;

Eras a ponte entre Deus e minha incerteza;
Salvação da descabia tristeza;
Vida, vontade irracional;

Eras a brisa que o vento trazia;
Taça de sol que o mar oferecia;
Fim de lamento, entorpecer boçal;

Eras o leve que o entardecer previa;
Futuro em que mal não havia;
Afirmação, reinício brutal;

Agora que eras;
E que há eras não és mais;
Agora em que não és;
Há eras;
E agora;
O que és?
Agora?
O que é Agora?


Gabriela Cuzzuol

10 de junho de 2007.


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VIRÁ

A saudade, alimento da vontade
que transborda nos poros do desejo
nos transporta aos pilares da verdade
e conspira na falta que não vejo.

O futuro, artesão do sem idade,
sedimenta o passado em azulejo
em paisagem que vive sem bondade,
o de fato é aquilo que eu almejo.

Ao que foi, ao já era, na lembrança
tudo fica do jeito que a criança
que já foi e que busca o que virá.

Ao passado, por tudo que passou
eu não guardo miçangas, pois eu dou
o meu sangue ao que vem, ao que virá.


Carlos Savasini

09 de março de 2008.

17 de abril de 2008

Em meu ofício ou arte taciturna (Dylan Thomas)


Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.
(tradução: Ivan Junqueira)

(Um dos poemas mais simples e mais verdadeiros sobre o que é isso, o escrever, um fardo, um ofício, um prazer, um vício.)

3 de abril de 2008

O Sono e a Letra

Por entre as trilhas do inconstantemente
Lavras, fecundas palavras, poeta
As lamas áridas do inconsciente,
Fazes do nada um trabalho de esteta.

Tua visão glauca tornas semente
E mundos constróis de teu ser asceta.
Sabes, porém, a finitude do ente,
Sopro vital que a vida mesma veta.

Dorme, poeta, que teu rosto inerme
Morre na sombra, soçobra na tarde,
Pobre coração que bate mas arde.

Teu canto supera teu fim de verme,
Far-se-á estátua, música da neve,
Poema a tornar o tempo mais leve.

15 de março de 2008

Páthos

A vida tem dúvida de si. E eu duvido de mim. Quisera eu ser como o tronco da mais humilde madeira, estátua para o caleidoscópio do tempo, de todos os fractais do tempo. Meu propósito inseguro de desnudar correntes marítimas e o mistério da morte. A morte de que vive minha angústia. Quisera ter nascido do sexo dos astros, caminhar intimorato e sem escudos pelos bosques do Inominável, tocar curioso e impensativo uma vaga noção de amor, como faria uma criança com asas de fogo. Permanecer incólume ao conflito entre o Verbo e o Ato.
Mas, diante do meu olhar inerte, o mundo, esta casa passageira, me desabita. Sou rebento da sua impotência. Nada se conquista para além da espessa cortina que fere o Cosmos.
E, enquanto minha consciência sofre com o eclipse desses passos exaustos, dessa vista embaciada, vou nutrindo minha alma de comprimidos de Gardenal.

12 de março de 2008

Passeio na casa

Procuro-te nos guardados
Garfos copos guardanapos usados
Tão complexo este jantar sem ti
Mordo cada naco de carne insossa
E só teu abraço me conforta de mim.

Distante na minha terra
Escondes teu rosto
Entre mãos que outrora já
Afastavam de mim o calor da noite de março.

Quantos rasos penetrarás
Na tua ausência em mim?
Responde, caçador da madrugada.

26 de fevereiro de 2008

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENKREUTZ (Fernando Pessoa)


Não tínhamos ainda visto o cadáver do nosso Pai prudente e
sábio. Por isso afastamos para um lado o atar. Então pudemos
levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo
corpo célebre, inteiro e incorrupto…, e tinha na mão um pequeno
livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da
Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente subme-
tido à censura do mundo.
Fama Fraternitatis Rosae Crucis


I
Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até corpo, essa descida
Até à noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não há no Mundo, Corpo Seu.


II
Mas antes era o Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada,
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido,
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue actual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.


III
Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Rosaecruz conhece e cala.
(Fernando Pessoa)