21 de dezembro de 2004

Perguntas

Completei vinte e cinco anos de vida no último dia dez de dezembro. O tempo passa com uma impavidez tão imperceptível quanto devastadora. Ainda ontem, eu era um menino assutado em relação ao mundo, medroso, inseguro, triste por não encontrar sequer caminhos que pudesse percorrer para chegar aonde quer que fosse. Hoje me vejo homem, ainda com uma grande tendência à melancolia, mas mais forte do que antes.
As perguntas continuam as mesmas, mas, pelo menos, sei que algumas delas nunca obterão respostas plausíveis. Quando, aos quinze anos, eu me questionava sobre o que seria uma década depois, apareciam nas minhas idéias apenas neblinas, apenas sonhos encobertos por neblinas, sonhos sem formas ou esperanças. Agora, tenho coisas que fazem de mim alguém, porém um alguém que ainda não sabe o que é, como se definir.
Sou um professor de Português, sou um cantor amador, faço parte de uma pequena família, tenho alguém com quem divido minha vida, tenho amigos... continuo tendo sonhos. E? O que faz de cada um de nós um ser humano? O que explica o fato de estarmos aqui? O nosso destino é incógnito, e com isso somos obrigados a nos conformarmos.
Por que me sinto tão só, tão desamparado, por mais que haja circunstâncias que me inscrevem numa situação definida? Qual a origem dessa sensação de abandono?
Ao lado desses questionamentos por si sós tão angustiantes, há outros que poderiam me ajudar senão a aliviar minha agonia, pelo menos a transcendê-la: eu sou um escritor? Eu realmente tenho talento para transcender a vida e transformá-la numa obra de literatura? Pois a arte é superior à vida... É claro que não se pode ter certeza do imanentemente incerto; entretanto, se eu soubesse estar no caminho, isso já seria um bálsamo. A metáfora da vida é a própria vida???

4 de dezembro de 2004

Em Busca do Tempo Perdido

A perseverança não é um dos meus atributos mais desenvolvidos, mas estou dedicado a uma empreitada da qual não pretendo desistir tão cedo: ler Em busca do tempo perdido até o fim. Já li No caminho de Swann duas vezes, e agora me delicio com À sombra das moças em flor.
Não é tarefa das mais fáceis, não só pelo tamanho da obra, támbém pelo conteúdo. Proust é exigente, ardiloso, inteligente, de uma erudição que demanda muito de nós. Mas está valendo a pena (o sofrimento). Porque trata-se de um sofrimento que engrandece, que eleva.
E penso no quão tardiamente entrei no mundo da literatura, o quanto estou defasado em relação àqueles que começaram bem mais cedo, lendo Monteiro Lobato nas tardes passadas em bibliotecas ou em suas casas acompanhados de seus livros. Comecei, verdadeiramente, aos quinze anos, quando descobri, numa aula de Português da escola, a poesia romântica de Álvares de Azevedo e de Castro Alves. Mas apenas na faculdade é que fui saber o significado de cada poema, de cada verso, da importância da palavra, da arte.

17 de novembro de 2004

Grandes autores

Confesso: sou um diletante da arte. Por mais que alguns críticos, como Gombrich, defendam que não existe uma Arte, com A maiúsculo, uma entidade abstrata chamada Arte, é impossível crer que ela não exista. Penso assim porque, se não houvesse a Arte, não haveria artistas, esses guerreiros que contam com poucos instrumentos, rústicos, triviais, banais, que, devido a um trabalho consciencioso e árduo, constroem grandes monumentos, catedrais, sejam esculturas, músicas, literatura.
O que me motiva a escrever isso é ter tido contato, no meu pouco tempo de estudante de literatura - sim, porque, antes de tudo, sou um estudante -, com autores que fazem da vida um circo tão desengonçado se comparado às suas obras. Acabei de ler O Agente Secreto, de Joseph Conrad, um romance que mistura uma intriga policial com discussões ideológicas e magníficas sondagens psicológicas. Um romance que me trouxe à lembrança o Dostoiévski que conheci em Crime e Castigo. E me pergunto: se isso não é Arte, é o quê?
Como sou um admirador do gênero romance, fico me indagando, numa obsessiva curiosidade, se minha vida seria a mesma se eu não tivesse conhecido obras de Faulkner, Conrad, Dostoiévski, Marcel Proust, Machado de Assis...
São autores com que, depois de termos contato, por mais superficial que seja, com seus romances e contos, ficamos estagnados, pasmos diante de tanta capacidade de enxergar o ser humano, e exclamamos, num misto de admiração e surpresa: Puta que pariu! porque nenhum adjetivo pode caracterizar o significado de cada um de seus livros.
São como catedrais construídas ao longo de séculos, gigantescas, assombrosas, perante as quais apenas soltamos interjeições guturais, palavras que não são palavras ainda, apenas sons incompreensíveis mas cheios de sentido.

19 de outubro de 2004

O Romance

"A história de Ana" tem ganhado uma complexidade tão grande que não sei nem se é o mesmo romance que há tempos desejo escrever. O que era uma narrativa sem pretensões sobre um assunto com o qual eu possuía alguma familiaridade transformou-se num monumento que habita a mente de seu criador, mas ainda não adquiriu forma.
Na verdade, está virando uma indagação a respeito do mal. O que é o Mal? Quais as dimensões de um ato malévolo? Que direito uma pessoa tem de interferir na vida de outra, destruindo suas esperanças, seus sonhos, suas ilusões?
Essa pergunta foi feita por praticamente todos os grandes escritores, porém nunca foi respondida; não se pode saber a medida do incognoscível.

14 de outubro de 2004

As Ondas (sobre uma visão do mar)

No último feriado prolongado, fui à praia. Fazia mais de dois anos que não ia ao litoral, e ver o mar novamente teve um gosto de recordação. Lembrei-me de um longínquo fim de semana junto da minha família, quando eu tinha seis anos de idade, em Santos; de uma semana com meus amigos, em Praia Grande, no final do segundo grau. Essa última foi como um ritual de passagem de uma adolescência ainda presa à infância para uma adolescência que caminhava para a idade adulta. Tratou-se de um rompimento, de uma despedida.
Desta última vez estava de novo com pessoas que amo: minha mãe, meu irmão, minha cunhada, meu sobrinho... Era um Fábio bastante diferente daquele Fábio de 16 anos que chorou ao voltar para São Paulo no verão de 1996. Um homem, acompanhado da pessoa que escolheu para ficar do lado, comprometido com o trabalho, com o amor, com a vida...
E, por quatro dias, apesar da consciência sobre as responsabilidades e as dificuldades, deixei-me entregar ao fluxo da vida, sem me interrogar, sem refletir no que estava acontecendo, vivendo apenas. Isso porque, nos tempos recentes, tenho me questionado bastante a respeito do que tem acontecido comigo, das minhas atitudes, dos caminhos que devo seguir. Parar de pensar tanto e me permitir momentos de tranqülidade foi saudável.
Entreguei-me à visão do mar.
E a vida é como o mar. Sim, os poetas que repetem tal idéia e tornaram-na um clichê jamais deixaram de ter razão. Sim, a vida é tão misteriosa e fascinante quanto o mar. O fascínio não oculta o medo, o mistério se agrega à beleza impávida. Nem todo o conhecimento pode diminuir a paixão, esta que nunca se explica. Duas ondas não são iguais, duas vidas não são iguais.
E, se a vida é temor, fuga, interrupção e trabalho, ela também consiste numa entrega, num abandono, num fluxo o qual nenhum ser humano compreende completamente.

30 de setembro de 2004

Noite de setembro

Enquanto escrevo, minha janela está aberta, por ela entra um vento não muito forte, porém frio. Fumo um cigarro, outro cigarro; limpo meus óculos, coço meu nariz, olho para casas e prédios e ruas, tudo confuso entre luzes amarelas e escuridão. Penso em minha vida, naquilo que ganhei, naquilo que perdi, naquilo que planejo ter. Penso e escrevo. As palavras saem, como estivessem aprisionadas e, pássaros engaiolados famintos de liberdade, vão se alojar no espaço vazio da tela do computador. Saem de um cativeiro e ficam estáticas em outro cativeiro.
É difícil pensar: a emoção é tão maior que o pensamento. O que se encontra em minha alma, minha pobre e tão inquieta alma, procura incansável um amparo, um consolo; minha emoção vasta parece se conformar apenas nas letras acumuladas linearmente à minha frente; mas, mesmo isso, parece tão pouco...
A vida é, com certeza, muito maior que a arte; mais surpreendente, menos indomável, mais misteriosa, menos racional. Pois toda forma de arte vem de alguma mente criadora. E nós, viemos de onde? Qual a mente que traça nossa trajetória, ou aquilo a que inconscientemente chamamos destino? Já Shakespeare fez dessas perguntas o tema subjacente de suas obras: seus personagens são almas perdidas à procura de possíveis respostas para suas condições.
Mas será que conseguiríamos ter consciência da impossibilidade de resolver tais dúvidas se não existissem Shakespeare, Proust, Faulkner, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Dostoiévski? Teríamos conhecimento da dúvida se mentes perplexas não transpusessem em palavras a nossa eterna angústia?? A grande arte nos põe perplexos diante de nós mesmos e nos faz detectar a carência de não sabermos quem ou o que somos no mundo que aprendemos a chamar de "nosso".
Como disse uma vez, num de seus textos, o magnífico Yeats: "Da contenda de um homem com os outros nasce a retórica; da contenda consigo mesmo surge a poesia." Somos os degarrados à espera de uma segunda vinda: a segunda vinda, acredito eu, não seria a de um Jesus encarnado, mas de um respeito pela humanidade e de uma profunda compreensão do nosso lado humano, tão frágil e nu, que foi afinal a maior de suas lições. E, enquanto isso não ocorre, a arte vem a preencher o vazio de nossa condição, buscando elevação e dignidade onde só encontramos dor.

22 de setembro de 2004

Prólogo

Primeiro de tudo: por que candidato a poeta? Não sei se tenho uma visão extremamente sacralizada do que possa ser a poesia, mas acredito que ser poeta é algo que exige do ser humano uma dimensão tão profunda de humanidade, algo intenso demais para pessoas enraizadas no cotidiano mais raso de suas emoções.
Ser poeta é além de ser humano. É estar distante do ramerrão o bastante para adentrar-se nele e remover suas frágeis estruturas tendo como instrumento nossa linguagem. Tirar do cotidiano da linguagem seu sub-reptício poder encantador. Há algo de mágico nas palavras, capaz de construir e de destruir, uma ação interferindo na outra ou conjugando-se à outra.
Enxergar isso está além do que a maioria de nós, mortais à espera da morte, numa vida insossa e restrita, tem a capacidade de fazer. Penetrar "surdamente no reino das palavras" (Drummond) para transcender o que a nossa parca realidade nos oferece a preços tão altos faz-se atividade não de escolhidos pela poesia, mas daqueles que escolhem a poesia.
E esse lugar está destinado a poucos.
Eu escolhi a poesia, mas ainda falta encontrar o caminho até ela. Por isso, sou um candidato a poeta, aspirante a caminheiro por estradas sombrias e tortuosas, por palavras traiçoeiras e viciadas, a fim de alcançar esse lugar tão misterioso quanto mágico a que damos o nome de arte.