10 de julho de 2007

Contraluz

Se eu te beijar sob a luz
do olhar alheio,
serei punido?

Se por mim também houve cruz,
sendo eu humano,
não sou querido?

Se vem a mim a mão de Deus,
no fim, no meio,
não sou Seu filho?

Se eu desejar desejos meus,
o mais humano,
meu é o martírio.

1 de maio de 2007

Uma (quase) defesa do verso

Em tempos de internet, cultura rápida e descartável, frases antes balbuciadas que ditas, a poesia ganhou marcas de concisão que, por vezes, mal reconhecemos um poema. Poucas palavras, poucos versos, quase lampejos, poesia atômica.
Não sou conservador ou passadista. Reconheço que cada época possui suas convenções, e o minimalismo é realmente uma convenção da nossa época. Linguagem veloz, breve, urgente; metáforas que golpeiam mais que deslumbram; trocadilhos; abreviações; jogos verbais radicais; uma poesia que se move sem que tenhamos tempo de a contemplar.
Mas por que um poeta contemporâneo deve necessariamente escrever assim? Por que parece tão anacrônico compor poemas em que se utilizam métrica, rimas, enfim, aqueles recursos que observamos nas obras estudadas nas escolas? Se a arte dialoga, de uma maneira ou de outra, com seu contexto, o fato de escrever poesia metrificada, lembrando aquele verso tradicional de tempos atrás, não diz algo sobre nossa própria geração?
Hoje parece que escrever poesia é fora de moda; quanto menos parecer poesia, mais atual. Discordo disso. Poesia, como qualquer arte, é trabalho, cuidado, apreciação e crítica, tudo junto, não apenas uma expulsão momentânea de um estado de espírito que precisa se expressar. Nada contra essa poesia mais minimalista; eu também escrevo assim, por vezes. Mas afirmar categoricamente que hoje a poesia tem de ser minimalista, que a forma "morreu", isso é um equívoco.
Sem cuidado formal não há arte. Barulhos ritmados não são música; só serão música se forem trabalhados a fim de se tornarem música. O mesmo acontece com a literatura. Palavras jogadas sobre o papel não são poema, nem conto, nem romance. Versos rimados, somente, também não são poesia.
A verdade é que, nos nossos dias, cabe ao poeta deliberar sobre o que fazer do seu repertório cultural e técnico, mas desprezá-lo em favor de uma suposta "liberdade artística" me parece antes arrogância que engenho. Qual o problema de se compor sonetos hoje em dia? Então Glauco Mattoso é anacrônico ou um poeta ruim, ou melhor, um poeta ruim por ser anacrônico? João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna recuperaram, no século XX, a forma medieval do auto, e recriaram-na com maestria; então?
E é irritante essa tentativa quase obsessiva da crítica de eleger "o melhor poeta do Brasil atualmente" ou elencar as "novas promessas da literatura brasileira", sempre tendo em vista aqueles que aparentemente são mais "radicais", menos "retrógrados", mais "originais" (seja lá o que isso significa).
Poetas, meus irmãos, escrevam utilizando a forma que julgarem mais adequada, mas jamais esqueçam que poesia é arte, não revolta, dor, desabafo ou "dor-de-cotovelo". E esqueçam essa crítica também, não fará mal algum.

2 de abril de 2007

Direto de "Rascunhos poéticos"

Dois tipos de urubus


I

Sua casa é o que a morte acolhe
no bico feio e sincero de foice,
prende o resto de pavio de vida
queimada sobre escombros de desejos.

Uma vez perguntado, não há
verbo que crie ou cante o seco.
Ele quer o morto claro, carne
sem som sob as sobras do sol.

II
Sua casa é uma rua entre outras,
nas ancas carrega a arma e a dureza
de ave faminta, e prende nas mãos
o orgulho de passar, ser temido.

Uma vez perguntado, ele diz tantos
verbos e, menino, ergue sorrisos.
Sem foice, ele mata, morre, volta a casa
como quem precisa, precisa, precisa viver.
(Foto de Kevin Carter, ganhador do Prêmio Pulitzer em 1994 com este trabalho. O fotógrafo, após um longo tempo de depressão, suicidou-se. Sobre que fim tiveram o urubu e a criança, não temos informações.)

28 de março de 2007

Além de tudo, aqui mesmo

Então, de repente, como quem tateia um facho de luz úmida, posso saber que abrir os olhos fere-me dentro. Se, ao me levantar de minha cama de sonho, angustiado percebo que ando como quem respira, imagino que seria melhor abrir asas sem as ter e voar.
Mas não posso. Do cômodo contíguo, um som agudo e monótono me avisa de que o mundo independe de mim - é impossível adorar. Nem a voz que me incomodava de tanto amor agora me acena. Quem está aqui, além da solidão que me é?
Indago, com lacrimejante lassidão, dos fantasmáticos raios de sol que adentram os minúsculos espaços entre o dentro e o fora... O quê?
Como saber o que virá depois do agora?
Se uma pedra de fogo ultrapassar a fragilidade desta redoma, se um homem sem piedade me desfizer do que sou, se tudo o que é absurdo puder acontecer, que força tenho eu para reagir?
A imensidão é o espaço do desejo... e do medo.
Não me importa o pano, o corpo, o sepulcro ou o além. Eu quereria o beijo, o pão, o riso e a verdade, caso existissem ao tocar o redor.
Subir ao pico do Everest ou descer ao fundo de Mariana... Qualquer lugar, que não aqui. Poder ler mais que viver... Fumar o instante... Beber cada gota do instante... Mas jamais perceber seu fim.
Contudo, abro, cauteloso, a janela, atendo o telefone.

24 de março de 2007

Rascunhos poéticos

Estou participando de uma oficina na Casa das Rosas intitulada "Rascunhos poéticos". Tem sido uma oportunidade como eu jamais tive antes. Encontrar pessoas que talvez creiam na palavra, na arte como semente, na força redentora do plantar palavras.
Desses encontros têm saído algumas "coisas", poemas ou projetos de poemas ou projetos de projetos. Vou postar aqui dois deles.


Idílio outonal

Ornei de mil sonhos as margaridas
do jardim defronte a nós... Nossos braços,
embriagados com as noites idas,
um coração formavam, de olhos baços.

E assim que recruzamos nossas vidas,
o tempo deslizava sem cansaços.
Se as chuvas desaguavam destemidas,
tínhamos um ao outro... e os abraços...

Mas como o vinho acaba e finda a espera,
e a hora, sôfrega, se esgueira e vai,
e a noite, manta tênue, muda, cai,

de cinza colorimos a quimera,
luz pretérita que não ilumina
mais o leito desse amor que termina.


Ré Menor

Não é de mim que falo,
é desse mar de som,
desse infindo céu de sangue
que o vento descobre
no horizonte...

Não é meu esse grito
tímido de violoncelo
na penumbra do arco-íris...
Sentado e só na areia,
teu olhar redime
como o poente em fogo...

Teu riso já não é meu
como a terra que freme
ausente de si mesma...
Almejei teu silêncio
como o cego a não ter medo.

Mas este devaneio que canta
nos espaços do que penso
só traz o vago. E o imenso...


São rascunhos. E toda obra é, no fundo, um rascunho.

9 de março de 2007

Política (W. B. Yeats)

No nosso tempo o destino do homem apresenta seu sentido em termos políticos. (Thomas Mann)

Como posso eu, com aquela garota
Ali a estar,
Na política de Roma ou de Rússia ou de Espanha
Atenção prestar?
Aqui está um homem viajado que sabe
Sobre o que é falado,
E há um político
Que tanto tem lido como pensado,
E talvez seja verdade o que dizem
Da guerra e de seus ameaços,
Mas, ah! ser eu jovem novamente
E prendê-la nos meus braços.

(Tradução minha)

É necessário dizer algo mais???Em tempos de "politicamente correto", o que dizer sobre o papel do homem perante o grupo a que pertence? Eu poderia aqui fazer várias elocubrações, mostrar o quanto de engajamento sou capaz de demonstrar... Mas prefiro ceder a palavra a alguém que viveu os dilemas da política e sabe como pode ser falho qualquer tipo ingênuo de envolvimento.


POLITICS
In our time the destiny of man presents its meaning in political terms." - Thomas Mann


How can I, that girl standing there,
My attention fix
On Roman or on Russian
Or on Spanish politics?
Yet here's a travelled man that knows
What he talks about,
And there's a politician
That has both read and thought,
And maybe what they say is true
Of war and war's alarms,
But O that I were young again
And held her in my arms!
(William Butler Yeats)

24 de fevereiro de 2007

Crepúsculo

A hora se espanta de ser a própria hora...
Foz de espiral que gira autofágica
Devora com letras minha alma
Fria de lama e vento e caos...

Escrita de estar na tormenta
Folhas secas no volúpico outono...

Fresco som nenhum de alhures
Ao efêmero dos ouvidos castros
Evapora em mim o sangue que sou
Cruz que há entre as estradas...

Persigo o que desfalece em linhas
Espaços fractais de um sonho de fogo
Queda de idéia até palco...

Enquanto isso, no vácuo espaço
Entre livros e asfalto e perguntas
É a vida como um mendigo...

20 de fevereiro de 2007

Elegia de amor

Nosso último olhar
de amantes
no princípio
da tarde
de chuva.

Estas mãos que tentaram
segurar o meio-dia
e a madrugada
falharam
em roxa ânsia.

O canto
do beija-flor
não ressoa
a esperança.

Perdão.


(Poema dedicado a um amor como um rio intermitente. O amor não finda, apenas paira num limbo que não se pode nominar.)

12 de fevereiro de 2007

O limite da maldade

Rousseau afirmava, na sua filosofia luminosa, que o homem é naturalmente bom, mas passa a ser corrompido pela sociedade. Isso, que na sua época (século XVIII) deve ter sido bastante revolucionário, confrontando-se com a situação estabelecida do Antigo Regime, hoje tornou-se um clichê, daqueles que se repetem à exaustão em discursos sensacionalistas ou falsamente esquerdistas. Se "a propriedade é um roubo", então a solução mais eficaz para restabelecer a paz entre os homens é distribuir os bens de forma igualitária, acabar com a desigualdade social, entre outras saídas possíveis. Simples e brilhante como a água de um manancial...
Se analisarmos tudo objetivamente, é relativamente fácil resolver tais questões. Mas eu me pergunto se, nas condições que encontramos atualmente - um mundo desmesuradamente feito de aparências, de lucros, de quantidades exorbitantes, de desejos tão intensos quanto passageiros -, seria possível realizar uma reforma tão profunda e definitiva. Essa pergunta, um tanto banal e adolescente, origina-se de uma angústia intemporal e refletida: como podemos reformar o mundo, se não somos capazes de mudar o nosso interior? Queremos um mundo melhor, mas o que oferecemos a esse mundo para que ele se torne melhor?
O homem se transformou (ou sempre foi assim?) num "buraco negro". Mais, mais, mais... Uma voracidade pelas coisas, uma incapacidade de perceber o outro, uma insensibilidade em relação ao outro.
Por que dizer isso? Ah - você deve estar pensando -, mais um que vai falar de "vamos lutar por um mundo de paz", "vamos nos dar as mãos" etc. Não, não direi isso. Apenas quero propor que pensemos - isso você pode fazer sozinho.
Um fato: três homens (na falta de um nome mais apropriado) roubam um carro no qual estavam uma mulher e seus filhos (uma menina de 14 anos e um menino de seis anos); elas saem do carro e tentam tirar o menino, mas ele ficou preso ao cinto de segurança do banco de trás; um dos assaltantes toma a direção do automóvel e parte; a criança, cuja mãe não conseguiu retirá-lo do carro, fica preso ao carro em movimento; do lado de fora, percorre uns sete quilômetros da cidade do Rio de Janeiro; as pessoas por quem o carro passa gritam, avisam, mas o motorista não pára.
Um conto de Kafka? Um filme de Hollywood? Uma piada? Não: um fato. A realidade.
Aconteceu mesmo. O único questionamento a se fazer é o seguinte: qual o limite da maldade humana? Pense no pior tipo de perversão, no pior castigo, na pior forma de maltratar uma pessoa. Aposto que você não chegará perto do que aconteceu na semana passada no Rio de Janeiro. "Mas essas pessoas que fizeram isso não eram pessoas..." Ah não, eram o quê? Eram seres humanos, sim. Eu juro.
Estamos chocados, pasmados, mas o que faremos quando o choque passar? Comentaremos de vez em quando, por exemplo num elevador, numa fila de banco, num ponto de ônibus, numa conversa com o amigo pelo telefone, sempre que um assunto faltar diremos: "Nossa, você viu aquilo?" E logo, para não "criar clima", falaremos de alguma celebridade, dos "agitos do BBB", algo assim.
Realmente, nós somos muito bons. Somos solidários, ficamos imaginando a dor da mãe, do pai, mas a cerveja que nos espera na balada também é uma necessidade, afinal somos seres humanos. Somos bons, mas sempre há algo que nos corrompe.
Valete, Fratres!

8 de fevereiro de 2007

Descobertas e Redescobertas...

Nunca costumo citar Manuel Bandeira entre os meus poetas favoritos. Mas aconteceu de, hoje, andando entre os espaços provocadores de uma biblioteca a qual freqüento, deparar com sua "Estrela da vida inteira". A súmula de uma vida dedicada à poesia. A trajetória de um homem que colaborou imensamente para a nossa literatura. Mas por que me distanciei tanto de um poeta que foi um dos primeiros a me cativar, lá nos princípios indefinidos da minha atração pela poesia?
Não sei responder. Talvez por que, conforme fui conhecendo outros poetas, afastei-me aos poucos dos que me trouxeram para esse mundo enigmático. Porém agora, reencontrando-o, percebo que seu valor é tão incomensurável quanto a beleza de sua arte.
Há algo mais profundo do que o mundo que habita em nós? Bandeira se pergunta o tempo todo qual a raiz das coisas, o que é essa vida que ele tanto persegue... Mas não parte para as grandes indagações, não elabora complexos pensamentos de inspiração vária como o ocultismo ou a filosofia... Ele vai ao que está perto, aparentemente tangível. É o cotidiano, o comezinho, o prosaico que lhe interessa. É a vida que pulsa nos intervalos entre o acordar e o dormir, nas lembranças de uma vida que não pode mais ser resgatada a não ser pela arte, no contato com entes que de alguma forma se descobrem no meio desse turbilhão tácito.
Nada pode ser mais poético do que descobrir que a vida está latente naquilo que menos nos chama a atenção... E como dói ter consciência da grandeza e da vacuidade de tudo isso. Estamos destinados ao Nada? Se estamos rumando para o fim absoluto, para a "Morte absoluta", então nos resta apenas - talvez - nos apegar ao que é nosso, nem que esse "nosso" seja diminuto.
No entanto, eu me pergunto com ansiedade: o que é nosso neste mundo? As lembranças? mas elas são fabricadas pela desilusão atual... Os amigos? mas eles estão ocupados demais em viver apenas a aparência de suas próprias vidas. A família? O emprego? Nem mesmo o que escrevo me pertence, pois, se eu mostro isso a alguém, já não é meu.
Se ser é estar, onde estou? Acho que é isso que eu procurei expressar no último poema que escrevi. Não tem ainda um título definido, mas creio que seja um dos melhores trabalhos de toda a minha vida. Fui inspirado pela re-re-releitura de "O cemitério marinho", de Paul Valéry. O poema é um espelho que nos reflete em palavras. Ao me ver refletido, só encontro esta indagação: o que estou fazendo aqui? se é tão bom, por que dura tão pouco? se é tão ruim, por que não terminar tudo? Eh Bandeira... Que dúvida!

3 de fevereiro de 2007

A long, long time...

Já é pública e notória a minha dificuldade em manter um diário. Mesmo o fato de usar o computador quase todo dia não é um fato que facilite o trabalho. Talvez, um dia, eu chegue à conclusão de que sou tão intermitente quanto o que escrevo. Esse é o mal de quem vive a crise literária cotidianamente: tenho talento? não tenho? se tenho, por que não escrevo? se não tenho, por que insisto em escrever?
É aquilo que Clarice Lispector afirmou certa vez: "se eu não escrever, eu morro". Viver e escrever são uma só coisa indefinida e inescrutável. Pesquisar na palavra o sentido, o algo-mais da vida, me faz crescer no pouco espaço que tenho. E, procurando esse espaço, pergunto de mim mesmo a minha linguagem - se isso tem algum significado.
Tenho lido bastante, principalmente poesia: Yeats, Rilke, Pessoa, Eliot, Drummond... Ou seja, os mesmos que sempre admirei. Um domínio do qual não me sinto apto a fugir, até porque não desejo isso. São poetas que me inspiram, que, num sentido clássico, imito. Li "Enquanto agonizo", de outro nome fundamental para mim, Faulkner. Li também "O deserto dos tártaros", de Dino Buzzatti, uma revelação, uma epifania.
Ou seja, estou me redescobrindo como leitor, partindo de onde sempre estive. Pode-se considerar isso uma vitória. Pequena, mas imensa.
"Da contenda do homem com os outros, nasce a retórica. Da contenda do homem consigo mesmo, nasce a poesia" (Yeats).