14 de novembro de 2009

RAUL (fragmento)

Raul aguçava a visão, procurando deter-se nos rostos e nos corpos vizinhos, mesmo nos distantes. As luzes dançavam no escuro, e ele estava cansado. Sentia as pernas se enfraquecerem, já não dançava no mesmo ritmo, "Let me tell you, you know I need a miracle"... os pés lhe doíam até a alma, tantas procuras, aonde o conduziriam? perguntava-se olhando o grande espaço que começava a esvaziar-se, perguntava-se sem formular em palavras uma certa angústia. Olhava o escuro da penumbra imaginando se já havia amanhecido lá fora. Talvez fosse um domingo de sol, claro, quente e novo como parecem ser todos os domingos de sol. Dormiria até tarde, isso ele pensou em palavras, "it's more physical what I need to feel for you"...

8 de novembro de 2009

APENAS

Apenas uma nuvem, sob o sol da cidade, nos espelhos enrugados dos carros, nos rostos aturdidos da miséria cotidiana... Uma nuvem tingida por um fraco fio de fogo, tecido sobre meus olhos inconsistentes... Ouço músicas duras, músicas dos passos pesados das tardes escurecentes... Uma nuvem tímida domina a noite da cidade... Perdi amores ao longo das avenidas surdas... Mas nunca consigo obter seu perdão... A nuvem some, não há lua alguma entre as faces obscuras do meu desespero...

19 de outubro de 2009

NUM MONUMENTO À ASPIRINA (João Cabral de Melo Neto)

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

(João Cabral de Melo Neto. A Educação pela Pedra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996)

(Um poeta é capaz de animar o inanimado, revelar a vida ávida oclusa na pedra, a complexidade febril do simples... João Cabral foi mais que um poeta: foi um mestre.)

7 de setembro de 2009

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA (DYLAN THOMAS)

IN MY CRAFT OR SULLEN ART

In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labour by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart.

Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages
Not for the towering dead
With their nightingales and psalms
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.



Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.


(trad. de Ivan Junqueira)

11 de julho de 2009

LA DORMEUSE (Paul Valéry)

Quels secrets dans son coeur brûle ma jeune amie,
Âme par le doux masque aspirant une fleur?
De quels vains aliments sa naïve chaleur
Fait ce rayonnement d’une femme endormie?

Souffle, songes, silence, invincible accalmie,
Tu triomphes, ô paix plus puissante qu’un pleur,
Quand de ce plein sommeil l’onde grave et l’ampleur
Canspirent sur le sein d’une telle ennemie.

Dormeuse, amas doré d’ombres et d’abandons,
Ton repos redoutable est chargé de tels dons,
Ô biche avec langueur longue auprès d’une grappe,

Que malgré l’âme absente, occupée aux enfers,
Ta forme au ventre pur qu’um bras fluide drape,
Veille; ta forme veille, et mês yeux son ouverts.



ADORMECIDA (trad. de Augusto de Campos)

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga

Dorme, dourada soma: sombras e abandono.
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela, Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

(tradução: Augusto de Campos)

30 de junho de 2009

EU SÃO PAULO

Sou apenas um – um homem só
do tamanho de um corpo
do tamanho do meu corpo
do tamanho do corpo imenso de uma cidade
sou uma cidade
correndo o tempo todo dentro de mim
o sangue correndo pelas avenidas inquietas
cada célula cada carro cada gente
mais de dez milhões de vidas correndo em mim
nunca parando nunca parando
nem mesmo dormindo eu paro
nem dormindo minha cidade para
na minha terra cinza em que não se planta nada
além de sonhos e de histórias
reconstruídos a cada enchente
minha cidade esculpida a temporais
de cada canto um grito
de cada grito um canto de andorinha
as crianças os cachorros os dejetos
o olhar de lado o olhar de frente o olhar para trás
tudo sempre cabendo no mesmo vão agora
como os que vão mais rápido que a Hora
como os que a retardam
como os que jamais saberão de onde vêm
e que aqui estão
correndo até o cansaço de calor ou frio
correndo de susto de surto ou de furto
apenas isso que é correr
para chegar ao não-limite de ser
e caber no terreno úmido das várzeas
fincar-se sem poder plantar
cada braço um logradouro
cada flor uma despedida
sendo um em mais de dez milhões que me olham
com a indiferença desconcertante do irmão
meu desejo mais terno
minha intermitente desilusão
os carros transitando entre as duas calçadas
do que escrevo
eu que também ergui as raízes do meu sonho em mim
do tamanho imensurável do meu corpo
do tamanho da minha cidade

11 de maio de 2009

ÁGUA-FORTE (Manuel Bandeira)

(Um exemplo de esmero no trabalho verbal, de concisão que não é gratuidade nem virtuosismo exibicionista. Um Bandeira a que poucos dão atenção; os outros se deixam seduzir por uma certa "facilidade" que é conveniente, para eles, considerar como poesia. Bandeira mostra que não existe poesia "fácil", nem a simplicidade é espontânea.)


O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.

Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inúteis
Por duas feridas.

Tudo bem oculto
Sob as aparências
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.

TÊNUE

Somos fino e frágil fio
tecido para esta terra
em permanente desvio
trilha que nunca se encerra.

Vemos sem dor o vazio
pois quem ora nunca erra
mas este mundo bravio
nenhuma certeza aferra.

(Como posso pequenino
da sabedoria o cúmulo
alcançar só com as mãos?)

Os iguais não são irmãos.
A nós, mortos, resta o túmulo.
Nós, tão-só fio frágil fino.

16 de março de 2009

"FORSE UN MATTINO ANDANDO IN UN'ARIA DI VETRO" (EUGENIO MONTALE)

(Esse é um poema curto de Eugenio Montale, do maravilhoso "Ossos de Sépia". É de uma simplicidade e, ao mesmo tempo, de uma vastidão que os grandes artistas conseguem. A solidão máxima e a percepção repentina de que existimos sozinhos num mundo que existe e independe de nós causa um terror de bêbado, o desnorteamento, o medo extremo, a consciência máxima. Montale se abriu para mim com esse poema mínimo e verdadeiro. O artesanato do poema é vertiginoso. De repente, também, como leitores, percebemos que estamos dentro dessa realidade que se abandona para voltar a si mesma, mas agora irreversivelmente dentro de cada um de nós.)

Forse un mattino andando in un'aria di vetro,
arida, rivolgendomi vedró compirsi il miracolo:
il nulla alle mie spalle, il vuoto dietro
di me, con un terrore di ubriaco.

Poi come s'uno schermo, s'accamperanno di gitto
alberi case colli per l'inganno consueto.
Ma sarà troppo tardi; ed io me n'andró zitto
tra gli uomini che non si voltano, col mio segreto.


Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, detrás de mim
o vazio, com um terror de bêbedo.

Depois como numa tela, acamparão de um jato
árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde ~ e eu partirei calado
entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

(trad. de Geraldo H. Cavalcanti)

P.S.: Não menos maravilhoso é o ensaio que Italo Calvino, no fundamental POR QUE LER OS CLÁSSICOS, dedica a esse poema. É um daqueles casos em que a crítica literária realmente se equipara à própria obra.

8 de março de 2009

DE RELANCE

A língua aguda do amor
corta a madrugada.
Sonâmbulos, os bêbados
olvidam possíveis atalhos
e rastejam pelos muros,
jibóias nos postes.

Uma gata grita de dor
(os outros estão surdos).

Há janelas acesas
para a favela defronte
- nenhuma confessa o pavor.

Em algum jardim,
deceparam-se as rosas.
Restaram, bem longe, muito longe,
jacintos e orquídeas.

Como uma dama-da-noite,
você me abraça...
De repente, percebo
que não sonhava.

27 de fevereiro de 2009

NA PRAIA

Só o vento me acompanha. Ele, que não me vê mas sente o frio que treme no meu corpo. Nada ao redor, a não ser a areia molhada que me faz sentir pesado e infantil. E o mar, que começa no toque dos meus pés e termina no toque no céu, em algum lugar do mundo. O frio também treme sob a pele das águas. Não reclamo dessa solidão tão temida. Meu medo é como a gaivota voando raso, quase nadando, esperando no vôo o peixe indefeso e sábio - ele, que não sabe que espera a morte sem esperá-la.
E se eu entrasse na onda mais alta, se me deixasse ir? Mas tenho medo. Serei capaz de suportar não saber o que até a concha vazia e quebrada já sabia antes de ser uma lembrança? É que deixar-me ir exige uma coragem de herói, e eu, há muito tempo, desaprendi a bondade de ser levado. Passei a escolher meus caminhos, todos eles, até os não-trilhados. Tenho casa, família, livros. Tenho um nome. Sinto um amor enorme por tudo. Não sou nada. Meu coração pulsa de susto fascinado. Meus olhos quedam entorpecidos diante da maravilha que é estar. Saber não me conforma, existe um mundo sem limites na minha ânsia. Quero tudo, e não quero nada. Quero aquilo vibrante entre um segundo que acabou e o segundo que já não será mais porque já foi. Quero o segredo de cada onda.
E se eu for até o fim do mar: encontrarei seu fim?
Eis que ouço uma voz humana, creio eu. Também já passou. Somente o vento me adentra, imparcial, preciso, indômito. Mas ainda estou em pé, e o mar. Escrevo meu nome na areia, sei que isso não é o que sou, mas, ainda assim, estou acostumado a ser o que ele diz. Meu nome é meu medo. Seguir as minhas pegadas que jamais verei é a coragem maior. Sei que, de repente, uma mão quente deslizará pelos meus cabelos como a onda afaga a areia. Por enquanto, sentir os dedos carinhosos do vento abranda minha febre.

17 de fevereiro de 2009

INTERLÚDIO

Quando o mar encontra o sol,
Não há nuvem como muro,
O olhar é pura penumbra,
E um corado fim de tarde
Com passos de bailarina
Se mascara em noite densa,
Concluo nossa existência:
Enfim descubro que o dia
Nada mais é que uma noite
Sem luz, provisoriamente.